Faz sentido juntar a herança numa sociedade?
Em Portugal, a forma como se estrutura a sucessão de imóveis pode ter impacto profundo não só ao nível fiscal, mas também na convivência entre herdeiros e na continuidade do património familiar.
Muitos pais ponderam se devem deixar os imóveis diretamente em nome dos filhos ou, em alternativa, criar uma sociedade para acomodar esse património e passar quotas em vez de bens.
Este artigo apresenta dois exemplos práticos de heranças, um com um imóvel único e outro com património de rendimento, para ilustrar como funcionam os dois modelos.
Depois dos exemplos, aprofundamos os conceitos legais, fiscais e operacionais, apresentamos um quadro resumo comparativo e terminamos com uma reflexão prática para ajudar cada família a decidir.
Vamos aos exemplos para que tudo fique mais claro
O caso do apartamento do Sr. António
O Sr. António faleceu deixando um apartamento no Porto avaliado em €300 000. Os seus dois filhos, Beatriz e Carlos, são os herdeiros. Beatriz gostaria de ficar com o imóvel para viver, enquanto Carlos prefere receber a sua parte em dinheiro.
No modelo de herança tradicional, a solução passaria por Beatriz compensar Carlos através do pagamento de tornas no valor de €150 000. Esta operação implicaria o pagamento de IMT por Beatriz. Se, em vez disso, o imóvel estivesse dentro de uma sociedade, Beatriz teria de adquirir a quota de Carlos. Caso isso implicasse que ela passasse a deter 75 % ou mais da sociedade, a operação poderia desencadear o pagamento de IMT sobre o valor do imóvel total.
Uma alternativa viável seria manterem ambos as quotas e a sociedade arrendar o imóvel, dividindo os lucros. Neste cenário, a sociedade permitiria evitar decisões forçadas e manter a unidade do património, mas também implicaria custos e obrigações formais.
Se ambos os irmãos quisessem manter o imóvel para arrendamento, na herança tradicional teriam de chegar a acordo para cada decisão (valor da renda, obras, contratos, etc.), o que pode gerar fricções. Já através da sociedade, podiam estipular funções claras ou nomear um gerente, profissionalizando a gestão.
Se, por outro lado, ambos quisessem vender o imóvel, o modelo pessoal permitiria a venda direta e repartição do valor, sujeita a tributação sobre mais-valias. Com uma sociedade, seria esta a vender, pagando IRC sobre a mais-valia, e só depois os sócios distribuiriam os lucros líquidos.
Este caso mostra que, para um único imóvel sem intenção clara de exploração conjunta, o modelo pessoal é geralmente mais direto. A sociedade só compensa se o objetivo for manter o imóvel por muito tempo, proteger a unidade patrimonial ou evitar tensões familiares com regras definidas.
O caso do prédio de rendimento do Sr. Guilherme
O Sr. Guilherme deixou aos três filhos, Joana, Henrique e Inês, um prédio com quatro apartamentos em Lisboa, avaliado em €500 000 e com rendas anuais de €30 000. Os três filhos pretendem, inicialmente, manter o prédio como fonte de rendimento.
No modelo tradicional, os imóveis ficam em nome dos três, que passam a ser coproprietários. A gestão das rendas, manutenção do edifício e eventuais investimentos exigem acordo entre todos. Esta indivisão é funcional enquanto há entendimento, mas o risco de bloqueios aumenta com o tempo.
Imaginemos que Inês, após alguns anos, decide emigrar e prefere vender a sua parte. No regime tradicional, poderá tentar vender a sua quota ideal a um estranho, algo raro no mercado, ou forçar uma venda judicial do prédio inteiro, o que poderá gerar conflito. Se o prédio estivesse numa sociedade, Inês poderia vender a sua quota aos irmãos, que teriam direito de preferência. Em alternativa, a própria sociedade poderia amortizar essa quota, reduzindo o número de sócios sem alterar o património.
Caso os três decidissem vender o prédio, no modelo tradicional cada um venderia a sua parte e pagaria IRS sobre a mais-valia. Já numa sociedade, seria esta a vender o ativo, pagando IRC sobre o lucro obtido, e depois os lucros poderiam ser distribuídos, implicando eventual nova tributação.
Neste tipo de património com rendimentos, potencial de valorização e necessidade de manutenção, a sociedade permite uma gestão mais profissional e estável. Facilita saídas e entradas de sócios, evita conflitos e oferece mecanismos de controlo e proteção, ainda que com maior formalidade e encargos.